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Prêmio Humanidade | Euzhan Palcy

A sucessão de fotografias em sépia indica uma temporalidade diluída no pó da memória. Aqui e ali distinguem-se faces e corpos. Preto é a cor que torna visíveis essas figuras invisibilizadas pela história. Estética e política não têm vidas separadas nas imagens de “Rua Cases Nègres”, o longa de 1983 que revelou a martinicana Euzhan Palcy — mulher, negra e proveniente de espaço periférico —, quando o mundo do cinema ainda mal conseguia enxergar para além de si mesmo.

O filme surpreendeu o público e o júri do Festival de Veneza, que reconheceu a cineasta de 26 anos com o Leão de Prata, a primeira vez que o prêmio foi concedido para uma mulher e pessoa negra na direção. Quatro décadas depois, “Rua Cases Nègres” segue impactando como na primeira vez.

Naquele momento, não se sabia nada sobre Euzhan Palcy. Tampouco do cinema martinicano. Na terra natal, porém, a cineasta já havia começado, em 1974, seu percurso de pioneira ao produzir e dirigir, com apenas 17 anos, um média-metragem para a TV. O drama sobre uma senhora trabalhadora numa plantação de bananas antecipou o afetuoso retrato de M’Man Tine, a avó-casulo de “Rua Cases Nègres”.

Após uma temporada na França, onde se formou em artes e literatura e estudou fotografia na prestigiosa escola de cinema Louis Lumière, Palcy retornou à Martinica. No curta “A Oficina do Diabo” (“L’atelier du Diable”, 1982), ela ensaiou a forma e o tema que ganharam amplitude no seu primeiro longa.

Exemplar precoce do que hoje chamamos decolonialidade, “Rua Cases Nègres” produz dissonância ao dar história, voz e ponto de vista ao povo que há séculos era tratado apenas como mão de obra.

O roteiro de Palcy, adaptado do romance memorialístico do martinicano Joseph Zobel, acompanha a infância de José, uma das crianças da Rua Cases Nègres, um lugar que simboliza tantos outros, para onde os excluídos são empurrados mundo afora. Quando os adultos saem para o trabalho exaustivo de extração da cana, esses jovens aproveitam para praticar algo que não demoram a perder: a liberdade.

Palcy constrói o relato em torno dessa ideia, que sabe ser utópica. Há sempre um adulto, um patrão, um branco, um professor ou a morte rondando para punir, coagir, usurpar o que as crianças acham que têm. No caminho, José ganha a consciência de que é um dos “condenados da Terra” e luta pela emancipação que os mais velhos não conquistaram.

A repercussão do filme catapultou a carreira de Palcy, e ela explorou a visibilidade para afrontar o repulsivo Apartheid na África do Sul, bastião tardio do colonialismo. Com “Assassinato Sob Custódia” (1989), a realizadora se inscreveu na linhagem do cinema político fundado na adesão emocional, de mestres como Costa-Gavras e Gillo Pontecorvo.

Primeira produção de estúdio hollywoodiano dirigida por uma mulher negra, o thriller de denúncia conta com o brilho de duas estrelas politicamente engajadas, Donald Sutherland e Susan Sarandon. O mítico Marlon Brando pausou a aposentadoria para uma breve participação que lhe valeu a oitava e última indicação ao Oscar.

O filme, lançado cinco anos antes do fim do Apartheid, integrou o movimento decisivo de pressão internacional que culminou na abolição do regime segregacionista.

Para não ser devorada e despersonalizada pela máquina hollywoodiana, Palcy realizou um retorno às origens em “Siméon” (1992). As cores e ritmos antilhanos iluminam esta afirmação de identidades, com a qual a cineasta brinca com um gênero — o musical —, antecipando o que o século 21 passou a chamar de “soft power”.

Em seguida, ela reiterou seu compromisso com a política dos afetos no documentário “Aimé Césaire, uma Voz para a História” (“Aimé Césaire, Une Voix pour L’histoire”, 1995), sobre o poeta antilhano que também acreditou no compromisso das artes contra as injustiças. Em outro documentário, “Percurso de Dissidentes” (“Parcours de Dissidents”, 2006), a cineasta reconstituiu a atuação de jovens martinicanos na resistência ao governo fantoche do marechal Pétain durante a ocupação da França pelo nazismo.

A filmografia concisa da cineasta intensifica a coerência de seu percurso, sempre mirando as continuidades entre o passado escravocrata e colonial e o presente de explorações e dominações.

Em 2023, Palcy foi homenageada com um Oscar honorário por seu papel na “criação de espaços para mulheres cineastas negras e inspiração para artistas de todas as cores em todo o mundo”.

A 49ª Mostra dedica o Prêmio Humanidade a Euzhan Palcy por seu papel fundamental na construção de um discurso contra-hegemônico e inspirador para tantas e tantos cineastas e também oferece ao público a oportunidade de redescobrir uma obra que se tornou ainda mais atual.